Por Ricardo Linhares*
O futebol tem o poder de gerar heróis e vilões quase instantaneamente, transformar o cabeça de bagre de ontem em craque no dia seguinte. O gol incrivelmente perdido, a defesa milagrosa numa decisão por pênaltis, a falha “inaceitável” aos 45 minutos do segundo tempo, a jogada brilhante que valeu um título. Quem um dia irá se esquecer de Cocada, Mazolinha, Adriano Gabiru, Breno Lopes, Leonardo Silva, Mineiro, Ronaldo Angelim e outros heróis improváveis de momentos eternizados na história?
A máquina de emoções que é o futebol justifica os costumeiros despautérios dos torcedores – menos os atos de violência. Quem era odiado agora é amado, quem era um grande jogador passou a ser alguém que não tem mais condição de vestir a camisa do time. Durante os 90 minutos (hoje em dia, mais de 100), canta-se, xinga-se, grita-se, desespera-se, ama-se. Tudo isso é notório, novidade para ninguém. Dito isso, o que se pode depreender após o caso Luís Castro?
No início de março, o Botafogo quase foi eliminado da Copa do Brasil pelo Sergipe e sofreu uma derrota para a Portuguesa que sacramentou a não classificação para as semifinais do Estadual. Castro parecia estar na corda bamba, e a imensa maioria dos torcedores alvinegros não hesitaria em dar aquele empurrãozinho para desequilibrá-lo. Menos de 3 meses depois, com o time líder do Brasileiro, criou-se uma virtual fila de desculpas para o técnico português, que colocou o Glorioso nos trilhos para lutar por um título que não conquista há 28 anos.
A euforia chegou ao auge com a imponente vitória sobre o Palmeiras no Allianz Parque, feito alcançado por poucos, e a disparada na liderança do Brasileirão. Nada poderia estragar os dias seguintes do torcedor do Botafogo, a não ser o fato de que o futebol é uma supercaixa de surpresas, ultimamente ornamentada com quase irrecusáveis riquezas sauditas. A saída de Castro, mal conduzida pelo próprio técnico, suscitou xingamentos vindos das arquibancadas do Estádio Nilton Santos em seu último jogo no comando do time. Justo? Injusto? Sim e sim, depende de como se analisa a situação.
O trabalho de Castro se estendeu por 15 meses, altos e baixos foram evidentes, houve ganhos extra-campo que serão importantes no futuro do clube. Esportivamente, o melhor momento era agora. A opção por ir embora fez com que não haja desfecho, pois o que acontecerá com o Botafogo até o fim do Brasileirão será obra bem ou mal-acabada pelo sucessor no cargo. A proposta foi aceita, e quem pode dizer que não gostaria de receber tanto dinheiro? Compreensível, sem dúvida, mas…
O que incomoda a muitos é que cada entrevista coletiva do Castro no Botafogo se tornou muito mais do que uma simples discussão sobre futebol e suas nuances. O treinador sempre disse entender a passionalidade dos torcedores, no entanto criticou diversas vezes todo o entorno com o qual se deparou – desde as atitudes de dirigentes de clubes, decisões de comandantes do futebol brasileiro e perguntas de jornalistas até situações que são comuns em nossa sociedade e se refletem no esporte. Fez uma ode à liberdade, citou a Revolução dos Cravos. Após um jogo em Brasília, ao ser barrado por policiais quando se dirigia ao árbitro para conversar (e reclamar, já que estava insatisfeito), expôs sua indignação na coletiva: “Agora faço eu a pergunta: assistimos a jogos em todos os continentes, e há polícia em campo? Me respondam! Botafogo x Flamengo estava sendo visto na Europa, e que imagem estamos vendendo? Polícia de choque em campo? Como um técnico é empurrado pelos bastões da polícia para não falar com o árbitro? Eu sou assassino? Vou roubar o árbitro? Vou agredir?”
Nessa ocasião, como em várias outras, concordei com Castro e refleti sobre como deveríamos pensar e agir de forma mais ampla ao lidar com o futebol, ir muito além de tratar o esporte mais popular do mundo apenas do ponto de vista emocional. Agradeço pelos insights, mas agora eu faço as perguntas: qual imagem é vendida por alguém que preza tanto pelos bons costumes e aceita trabalhar na Arábia Saudita? A defesa da liberdade seguirá sendo praticada nas coletivas após os jogos do Al-Nassr?
A coerência foi para o fundo do poço, enegrecida ao misturar-se com petróleo, e a passagem de Castro pelo Botafogo acabou tornando-se um museu de grandes novidades. Vida que segue, a máquina de emoções – assim como o tempo – não para jamais.
*Ricardo Linhares é jornalista, trabalhou como repórter e editor na Revista Placar, Jornal dos Sports, Lance! e GE.com. Colaborador em diversos livros e publicações sobre história do futebol. Gerente da Agência Frog – Comunicação, Marketing e Tecnologia.